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O teatro desoprimindo... libertando!

por Jéssica Duran

"O teatro é um ensaio para a revolução."

(Augusto Boal)

 

"Vejam aquele homem na esquina, se negarem a ele o direito de ser artista poderia-lhe negar o direito de serem homens (...)

digam antes, ele é um artista porque é um homem."

(Bertold Brecht)

Nós, As Trapeiras, criamos o espetáculo Tramarias tendo em vista um público direcionado, específico – as mulheres que já sofreram violência doméstica de seus maridos e/ou namorados e estão se "refazendo" nos Centros de Defesa e de Referência à Mulher. Todas as cenas, falas, músicas e até mesmo as performances corporais foram pensadas a partir de uma realidade de agressão por parte desses homens e de enfrentamento e libertação por parte dessas mulheres. Foi como se a peça, a dramaturgia, as cenas já estivessem criadas na realidade, só o que fizemos foi vestir um figurino, trazer alguns elementos de cena, e chegar nas Casas para perceber que nós éramos, mais que nada, ferramentas de uma luta que não começava na obra teatral que estávamos apresentando, mas de uma luta que já vem de muito tempo.

A experiência com o teatro do oprimido de Augusto Boal e de seu mestre - o teatro épico dialético de Bertold Brecht, não são técnicas e práticas desconhecidas dos fazedores e das fazedoras de teatro contemporâneos, inclusive já conhecidas e utilizadas em outros processos e trabalhos que nós As Trapeiras realizamos durante nossa trajetória profissional e/ou acadêmica. Contudo, o uso dessas ferramentas no espetáculo Tramarias, bem como o uso do humor, o coro, as músicas, o gestus, e o teatro-fórum, foram fundamentais para o entendimento da importância dessas ferramentas para aumentar nossa proximidade e jogo com o público presente.

Durante a criação da obra imaginávamos alguns tipos de intervenções e reações que as espect-atrizes poderiam ter frente às cenas que apresentaríamos. Imaginamos espaços de abertura para a entrada dessas expect-atrizes, e até mesmo pensamos que poderiam simplesmente não querer participar em alguns momentos dos quais abriríamos para entradas espontâneas. Contudo, esse espetáculo nos propiciou experimentar na prática que as ferramentas do teatro do oprimido e de Brecht são mais eficientes do que As Trapeiras poderiam imaginar.

Dentre os expedientes épicos que mais se mostraram eficientes foi o uso do humor como efeito de distanciamento. Montamos um ringue onde os adversários eram o marido agressor e a esposa oprimida (Maria), neste ringue usamos de uma esquete clássica do circo tradicional (“O Boxe”) e treinamos claques e técnicas de palhaço para causar propositadamente o riso nas expect-atrizes presentes. O público depois nos relatava que havia vivido exatamente o que mostrávamos na cena do ringue, mas ainda assim gargalhavam, pois as personagens estavam cicatrizadas e exageradas. Esse riso se tornava a cada round  mais nervoso e constrangido, até que no terceiro e último round  havia pouca ou nenhuma risada- quando não, havia lágrimas nos olhos das mulheres na plateia, o efeito de distanciamento havia funcionado.

         

Houveram intervenções não programadas que deram outra perspectiva do quanto o distanciamento deixou as espect-atrizes à vontade e criativas. Há um momento em que pedimos para duas pessoas segurarem a "corda" que dá estrutura ao ringue, porém elas não fazem nada programado, simplesmente ficam durante toda a cena em pé segurando a corda, até que o marido agressor diz que a brincadeira acabou – enquanto a Maria está jogada no chão após uma cena de agressão forte – e que elas podem se sentar. Muitas das apresentações elas simplesmente se sentaram, mas em três diferentes dias houve uma interferência não prevista, as mulheres que estavam ali simplesmente se recusam a sair para se sentar, brigam com o marido, uma tentou inclusive bater nele.

 Na cena final do espetáculo, propomos o teatro-fórum, no qual há uma cena em tom dramático, em que o marido volta da cidade com um revólver e ameaça a vida de Maria. A cena suspende e aparece a figura da coringa, que no teatro do oprimido representa alguém que conhece toda a cena e intervém para pedir ajuda e proposição do público presente, convidando e instigando o público para que entre em cena e atue no lugar da oprimida, de preferência, uma vez que Boal dizia que não podemos enquanto oprimidos esperar que o opressor se transforme, mas que devemos treinar para a libertação da opressão através de ações dos próprios oprimidos e oprimidas.

 Nesta cena final tínhamos muito medo que ninguém do público quisesse intervir na cena, isso poderia trazer um constrangimento e um congelamento da participação das mulheres, que talvez não quisessem se expor a tal representação. Porém, para nossa surpresa não houve uma só apresentação, dos oito Centros de Referência e dos dois ensaios abertos, que não aparecessem proposições e intervenções das espect-atrizes e dos espect-atores presentes.

         

Tiveram as mais diferentes propostas, desde bater no marido, até denúncias, chamada de ajuda para amigas, grito de "fogo!", tremedeiras e choros, pois segundo os relatos das mulheres era como se estivesse em sua frente o seu próprio marido agressor, aquela era a oportunidade de treinarem sua libertação da opressão, e mesmo as que não entraram em cena somente assistiram as intervenções, puderam criar repertório de diferentes possibilidades de reação frente a uma situação parecida de coerção na vida real. Mais uma vez o teatro do oprimido mostra sua função e funcionalidade.

A experiência com o projeto Mulheres (des)tecedoras de histórias foi ficando com cada vez mais sentido para mim. É como se a cada ensaio do processo, a cada apresentação na temporada, a cada debate final com as mulheres, tudo fizesse mais sentido. Certo dia a companheira Sabrina nos disse antes de uma apresentação - "estamos fazendo tudo isso pelas mulheres... e por nós.", e esta foi a peça do quebra-cabeça que me estava faltando!

Quando havia medo, desânimo ou mesmo ansiedade por um resultado específico, eu me colocava a lembrar que Tramarias não foi realizado para mostrar o quanto somos boas atrizes, ou para mostrar como sabemos imitar bem, mesmo porque as expect-atrizes nos deram um banho de conhecimento quando atuaram a sua própria realidade, mas todo o processo de criação e de temporada me mostrou que esse trabalho foi feito antes de tudo em homenagem às mulheres que foram massacradas, humilhadas, agredidas e ofendidas simplesmente por serem mulheres, foi para as guerreiras que não desistiram e insistiram em gritar sua libertação, foi pelas irmãs que não esqueceram as outras irmãs que ainda estão em perigo e estenderam suas mãos e abriram seus abraços até que todas se libertem, foi por mim mesma, que ainda tenho muito o que aprender, que ainda tenho muitos traumas pra curar, que ainda tenho muito o que lutar...

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