(DES)ALINHAVAR E (DES)ARREMATAR
ciclo de aprendizado e cura, com começo, porém sem fim
por Ivy Mari Mikami
Trrrr...... tr..................., trrrramarrr
E corta, costura, mede, recorta,... observa, desfaz, prova, refaz,... trrrrr...... alinhava, e... arremata! Trrraammm.... tramarias!
Tramarias é um trabalho de cuidado artesanal – e foi nutrido pela atenção em mantermos sempre a nossa sinceridade acesa, para conosco, para com nosso propósito e para com as mulheres, na simplicidade dos recursos (possibilitando que a peça aconteça em qualquer espaço coberto), e no nosso desprendimento do compromisso com a genialidade do produto final. E, ainda, pela convicção de que estamos juntas na caminhada, no aprender e no errar, sempre atentas e abertas a ouvir e também a criticar construtivamente.
Dada a largada do início do projeto Mulheres (des)tecedoras de histórias, iniciamos sem demora a tessitura daquilo que com tanto amor fora idealizado! Entretanto, talvez devido a essa empolgação juvenil e ansiedade em ver o rebento nascer logo, fomos um pouco rápido demais. Esse caminhar a passadas largas provocou algum entrave, como se tropeçássemos em nossas próprias pernas... Após momentos de crise e de conversas sinceras e prolongadas entre nós, pouco a pouco fomos diagnosticando alguns pontos que poderiam ser melhor trabalhados e repensados. Por exemplo, a dramaturgia precisava de tempo para ser gerada... E tivemos que compreender e respeitar esse tempo. E assim tecíamos: com calma e serenidade, mas com planejamento e disciplina, certas de que com amor e sinceridade, tudo fluiria. E assim, seguimos: a montagem de Tramarias se deu em 3 meses (Fev/Mar/Abr), em ensaios intensos que mesclavam técnicas diversas e também em rodas de conversa entre nós, quando sentíamos ser necessário.
Essa é uma postura do coletivo pelo qual muito prezo: mesmo quando a ansiedade e até um pouco do medo nos assolava, ainda assim, achávamos tempo para ouvir-nos, enquanto mulheres e artistas. Oferecíamos e recebíamos o colo uma da outra, e palavras cuidadosas/doras. Sempre dávamos um jeito de termos esse momento de cura individual e coletiva. O processo de criação e montagem possibilitou que nos desenvolvêssemos muito como atrizes, confiando na intuição, nas nossas próprias autonomias criativas e potenciais expressivos, e ainda ressaltando e colocando em cena habilidades específicas de cada uma de nós, com técnicas do Teatro do Oprimido (Jéssica), da dança (Ivy) e do circo (Sabrina).
O processo de Tramarias como um todo, me possibilitou curas no âmbito profissional e pessoal, ao trazer à tona questões que eu mesma havia enterrado e negado para mim. O meu medo e insegurança para cantar (não só em cena, mas na vida) tinham motivo: quando eu tinha 7 anos de idade, sofri algum tipo de abuso (que eu ainda não me recordo com clareza) pelo meu professor de teclado, o que determinou que eu não quisesse mais ter nenhum tipo de contato com o universo musical. Nos últimos anos eu já vinha tentando destravar e trabalhar a minha expressividade vocal com a ajuda de professores e colegas, mas foi somente a partir do momento que eu olhei de frente e falei sobre isso com as companheiras Trapeiras, foi que pude sentir um desenvolvimento crescente no meu cantar. Agora eu não tenho mais medo...
Ainda, ao nos questionarmos a todo o tempo sobre o que colocar em cena (se esta fala é adequada e eficaz, se este movimento gera a leitura desejada, etc), por extensão, (nos) questionávamos da existência ou não de traços de machismo. Esse processo nos ajudou muito, portanto, na nossa desconstrução enquanto mulheres, e nos alertou sobre o papel social e formativo de nosso ofício como artistas e em nossa responsabilidade ética.
Durante a tessitura, convidamos algumas parceiras para somar com seus talentos: Carol Doro – fotógrafa; Carol Abreu – audiovisual; Helena Ariano – Arte e Jucélia Bernardo – figurino. Foi um aprendizado a mais com a companhia delas durante esse projeto. Fortalecer mulheres e parcerias com mulheres, numa combinação multifacetada de talentos nos proporcionou colocar em prática a sororidade. E tudo pôde fluir suave, porque nos compreendíamos por um simples olhar.
Helena, nossa parceira artista plástica, após assistir Tramarias em nossa estreia, publicou o seguinte relato nas redes sociais.
Volta e meia posto coisas sobre a falta de valorização que nós artistas sofremos, o modo como nosso trabalho não é enxergado como tal e como é difícil um cliente ter realmente noção da mão-de-obra e da produção intelectual que tudo o que fazemos exige. Creio, no entanto, que nunca cheguei a falar de aspectos positivos que já vivenciei. Hoje vi uma apresentação das Trapeiras, coletivo com o qual venho trabalhado, e foi simplesmente incrível. Senti mais do que nunca que todo o trabalho que tenho realizado com elas (mesmo que eu acabe ficando com a parte mais antissocial da coisa hahahah) mostrou resultados; que são atrizes e mulheres maravilhosas e competentes; que nossa arte vale a pena e devemos continuar, da forma como podemos, a propagar essa arte - seja na "cara de pau", por meio de uma cena teatral, ou timidamente, por meio de um desenho. Obrigada por valorizarem tanto o público de vocês e o trabalho artístico, principalmente das minas; e obrigada por serem tão boas e apaixonadas no que fazem. Continuem assim. (Helena Ariano, 2016)
No decorrer das apresentações, percebemos o quão importante e urgente é falar sobre isso, da forma como Tramarias aborda o tema. Compreendemos que muito pode ser acessado por meio do teatro (e da dança, do circo, da música,...), que a ludicidade e subjetividade da arte tem o poder de provocar outras percepções e reflexões sobre a violência doméstica contra a mulher e, sobretudo, sobre o machismo. Entendemos nosso papel social. Entendemos que aquilo que nos move enquanto artistas, caminha para uma cura de mulheres, e assim, para uma sociedade mais justa e igualitária.
E assim, Tramarias, dentro do projeto Mulheres (des)tecedoras de histórias, tornou-se o propulsor de um ciclo de amor, que veio com força total combater o ciclo da violência. Porque por meio da nossa cura, enquanto mulheres e artistas, reverberamos na cena esse empoderamento. Sim, eu, Jéssica e Sabrina nos empoderamos com o processo de Tramarias. Esperamos poder ter inspirado e provocado as mulheres presentes, para uma reação em direção de seu empoderamento pessoal e possível libertação nos mais diversos âmbitos, e rompimento com as situações de violência ao qual ainda se veem presas.
Os séculos de opressão vividos pelas mulheres será superado pela união das mulheres. Mulheres não serão mais caladas, humilhadas, culpabilizadas, violadas, estupradas e mortas. Escolhemos combater essa injustiça, com todas as nossas forças. Enquanto eu viver, estarei de mãos unidas às de vocês, manas de todos os cantos!